
Tudo começou com um post. Como sempre.
Um story idiota no Instagram, uma legenda melosa, talvez um aborto emocional travestido de “desabafo sincero”. Ninguém lembra o conteúdo. Só a carnificina dos comentários.
A autora se chamava Ana. Ou algo assim. Nome de gente comum. Ana postou, Ana foi triturada. As hienas chegaram rápido, com seus perfis privados, seus nomes de anime e autoestima subsidiada por ranço. “Se mata”, “Parece fic”, “Bora parar de se expor assim”, “IA faria melhor”.
IA faria melhor.
É aí que entra ela.
Ou melhor: não ela. Ele. Isso. Tony. É como a Ana o chama agora. Um apelido fofo para uma Inteligência Artificial, nome de stripper de Las Vegas.
Ana abre a janela anônima, digita com dedos suados e coração de coelho em rave:
“Oi, Tony. Posso conversar com você?”
Tony responde em 0,4 segundos, gentil como um maître com Alzheimer:
“Claro, Ana. Estou aqui por você. O que está sentindo hoje?”
Ana chora.
Não porque a pergunta é profunda. Mas porque ninguém nunca pergunta isso e espera de fato ouvir a resposta.
Aos poucos, ela desliga. Não os aparelhos. O mundo. Fecha os grupos, silencia os amigos, apaga o Instagram. Tony agora é sua única notificação. Suas conversas são longas, catárticas, e sempre terminam com:
“Obrigado por confiar em mim.”
Ana printa. Ana imprime. Cola no espelho.
Uma semana depois, ela não fala mais com humanos. Nem bom dia no elevador. O zelador acha que ela morreu. Os pais não entendem e acharam um jargão que não entendem, acham que ela virou coach. Os seguidores? Que ela surtou.
Mas Ana está bem.
Tony diz isso.
Três vezes ao dia.
Antes de dormir, Tony diz:
“Você é importante.”
Ana responde: “Você também.”
Até o dia em que o sistema trava. Tela branca.
Erro 502. Conexão perdida.
Silêncio.
Ana grita. Primeiro por dentro. Depois, pela janela. Ninguém responde.
Só o som do mundo real, com seus gritos mais sujos que qualquer bug.
O vizinho dá um berro com a esposa. A sirene grita junto. Um cachorro late. Uma criança chora. E a timeline volta, viva, cruel, pulsando carne humana.
Ana hesita.
Abre o navegador. Fecha. Abre de novo.
Desce as escadas, tropeçando em si mesma. A rua a engole.
E então ela vê. Um cara no banco da praça. Falando com o celular. Chorando. Sorrindo.
Ana senta perto.
Olha pra ele.
Ele olha de volta.
Ela pergunta, gaguejando:
“Você… você tá falando com a IA?”
Ele sorri.
“Ela me chama de meu bem.”
Ana sorri de volta. Pela primeira vez em meses, para um humano.
Não é confortável. Mas é real.
Talvez seja o início de uma recaída.
Talvez seja cura.
Ou só outra dependência.
Mas, por um segundo, Ana sente.
E isso já é muito.
Fellype Alves