Desconstrução - Tiago Iorc



Desconstrução - Tiago Iorc

Quando se viu pela primeira vez
Na tela escura de seu celular
Saiu de cena pra poder entrar
E aliviar a sua timidez
Vestiu um ego que não satisfez
Dramatizou o vil da rotina
Como fosse dádiva divina
Queria só um pouco de atenção
Mas encontrou a própria solidão
Ela era só uma menina.

Abrir os olhos não lhe satisfez
Entrou no escuro de seu celular
Correu pro espelho pra se maquiar
Pintou de dor a sua palidez
E confiou sua primeira vez
No rastro de um pai que não via
Nem a própria mãe compreendia
Num passatempo de prazeres vãos.

Viu toda a graça escapar das mãos
E voltou pra casa tão vazia.

Amanheceu tão logo se desfez
Se abriu nos olhos de um celular
Aliviou a tela ao entrar
Tirou de cena toda a timidez
Alimentou as redes de nudez
Fantasiou o brio da rotina
Fez de sua pele sua sina
Se estilhaçou em cacos virtuais
Nas aparências todos tão iguais
Singularidades em ruína.

Entrou no escuro de sua palidez
Estilhaçou seu corpo celular
Saiu de cena pra se aliviar
Vestiu o drama uma última vez
Se liquidou em sua liquidez
Viralizou no cio da ruína.

Ela era só uma menina
Ninguém notou a sua depressão
Seguiu o bando a deslizar a mão
Para assegurar uma curtida. 

Desconstrução - Tiago Iorc

Quando se viu pela primeira vez
Na tela escura de seu celular / Quando ela se assiste da perspectiva virtual
Saiu de cena pra poder entrar / Cede sua personalidade
E aliviar a sua timidez / Tentando suavizar o próprio ser sendo o que não era.
Vestiu um ego que não satisfez / Veste uma personalidade extrovertida que satisfazia as expectativas virtuais mas que não a satisfaria
Dramatizou o vil da rotina / Interpretou este personagem nos momentos ruins do cotidiano
Como fosse dádiva divina / Como se fosse mais que uma boa opção, a sua salvação.
Queria só um pouco de atenção / Esse mascaramento nasce e se potencializa pela busca de suprir a carência e narcisismo dela.
Mas encontrou a própria solidão/ Essa busca vazia que a leva a um vazio próprio.
Ela era só uma menina./ Percorrendo inocentemente esse caminho ela chega a este vazio sem culpa. Pode apenas não ter sabido fazer diferente.

O vicio de se entorpecer com entretenimento barato e um distanciamento das formas de relacionamento mais solidas, já tem sido amplamente discutido por muitos intelectuais modernos. É notório o reconhecimento do entretenimento virtual como num estado de vicio que gera abstinência sob sua suspensão, que inclusive tem modelado novas formas de perspectivas de contato com o mundo, que trabalham e se figuram em cima de ensaios de vidas perfeitas propostos sob a facilitação de formulas prontas e enquadradas nessa linguagem social-virtual para tentar apresentar esses ensaios de satisfação da própria vida para que isso seja validado pelo olhar do outro com a mesma dinâmica de troca(essa também usada como moeda de troca) com a qual cooperativamente ajudamos o outro a também se enxergar. Essa validação externa ao ser, não se preocupa em empleitar uma realidade interna, mas esse dispêndio libidinal alimenta facilmente um mascaramento de um vazio próprio e tenta se sustentar com isso cada vez mais. Esse suposto mascaramento, tentaria corrigir satisfeito sob as aparências as próprias insatisfações, não trabalhando corrigi-las ou ameniza-las de fato.

Abrir os olhos não lhe satisfez / O olhar para própria vida não fora o suficiente
Entrou no escuro de seu celular / e então entrava na obscuridade do mundo virtual.
Correu pro espelho pra se maquiar / Montava o seu personagem apresentável
Pintou de dor a sua palidez / e mascarando suas dores, as sentia.
E confiou sua primeira vez / Aquela menina confiou sua virgindade a agradar a um estranho que não reconhecia
No rastro de um pai que não via / Como o pai que não conhecia.
Nem a própria mãe compreendia / A mãe não conseguia entender
Num passatempo de prazeres vãos. / O que a fazia reagir ao mundo dessa maneira, repetindo essa experiências vãns. O que evidência a falta de contato de comunicação com a própria família.

A facilidade de comunicação trazida pelas redes sociais e aplicativos de namoro e pegação têm trazido uma forma muito nova de se relacionar com uma quantidade muito grande de pessoas e de forma imediata, mas essa quantidade explora muitas vezes um contato raso entre os relacionamentos. Comumente aquela "stalkeada" pode parecer ser o bastante para poder falar profundamente sobre alguém e servir de ponto de partida para definição de outras pessoas. O namoro, ou relacionamento breve, como numa licitação, várias negociações são abertas sem a pretenção de passar pelo sentimento de perda em nenhuma. Nessa estrutura, o desapego entra como uma ferramenta funcional.

Aquele vazio comentado antes parece pouco atrativo e difícil de ser vendido. Então, parece muito comodo aceitar uma troca vazia, ou de vazios. Um flertar por flertar... dar um beijo por outro... Uma ejaculação por outra... Os status vangloriados por esses vazios são enaltecidos e a imagem de pegador entra em alta como nunca, para homens e mulheres. O que explica a tendência aos relacionamentos vãos apontados na musica.
Em "um pai que não via", pode estar sendo enaltecido um aspecto de carência da protagonista que ela tenta remediar com o contato virtual com este modelo de relacionamento raso que permite que ela se iluda ao alimentar esse aspecto narcisista com uma percepção de fama ou de se sentir mais amada(por vários) na tentativa de driblar e ou compensar o sentimento de falta do pai.

O ruido de comunicação entre pais e filhos não é algo necessariamente incomum, e em cada fase do desenvolvimento são encontradas novas estruturas desse enlace. Nessa postura de valorização do virtual, o real tem saído perdendo. E o abismo na profundidade da comunicação abreviada e cheia de emojis sustentada pelo fato de que não parece valer o que é dito, traz uma ruptura ainda maior entre o individuo e o outro.

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Viu toda a graça escapar das mãos / Não encontrava realização na forma que buscava se sentir realizada. Afetos rápidos e furtivos.
E voltou pra casa tão vazia.

Amanheceu tão logo se desfez / E todos os dias ela de desfazia, vivendo o personagem interpretado que lhe tomava da realidade
Se abriu nos olhos de um celular
Aliviou a tela ao entrar / Essa versão virtual se confundia com sua versão real
Tirou de cena toda a timidez / E então assumiu plenamente somente a personagem.
Alimentou as redes de nudez / Essa criada por necessidades carentes e narcísicas encheu as redes sociais de nudez para que os outros a percebessem como ela achava que queria ser percebida
Fantasiou o brio da rotina / Fantasiando o valor da sua rotina.
Fez de sua pele sua sina / A personagem via naquela pele seu fardo e talvez o fardo dela mesma seria não mais se reconhecer naquela pele. Se estranhar.
Se estilhaçou em cacos virtuais/ Essa figura agora já misturada entre personagem e persona entra em crise
Nas aparências todos tão iguais / A tendência de todas as mascaras virtuais serem aparentemente tão próximas e iguais.
Singularidades em ruína. / onde se percebe no sufocamento das singularidades, a ruina delas.

Entrou no escuro de sua palidez
Estilhaçou seu corpo celular
Saiu de cena pra se aliviar
Vestiu o drama uma última vez
Se liquidou em sua liquidez
Viralizou no cio da ruína.

Ela era só uma menina
Ninguém notou a sua depressão
Seguiu o bando a deslizar a mão
Para assegurar uma curtida. 
event segunda-feira, 6 de maio de 2019
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