Desligado de que e quem?


Costumam dizer que sou muito desligado do mundo.
Ver demais pode levar a cegueira 
Eu li isso num livro que já não me lembro qual. Logo após aos agradecimentos, uma daquelas citações antes ao inicio da leitura propriamente dita. Minha leitura começou e por aqui ficou. A frase ecoou na minha cabeça em diversos sentidos da frase em si e em projeções. E me sentindo desestimulado, e de certa forma positiva, pela frase em questão... Não quis ver o que tinha no livro. Instantaneamente a frase encheu minha cabeça, e como já me ocorre de vez em quando numa situação como essa, fiquei com olhar preso aquelas letras, intrigado.

Logo fiz analogias e inteirei sentidos aquela pequena frase que tanto me esclareceu. Fiz frases como:

"Saber demais pode levar a ignorância",
"Amar demais pode levar a amor nenhum",
"Duvidar demais pode nos levar a ter certezas",
"Medo(não sentir segurança) demais pode levar a segurança",
"Errar demais pode levar ao acerto",
"Liberdade demais pode não nos dar escolha de sermos livres",
"Realidade demais pode ser ilusão"
...


    Era incrível em minha imaginação, reparar e constatar que a quantidade de algo imaterial e sem forma, plenamente subjetivo, padronizado como positivo ou não, em demasia, pode de fato gerar seu contrário. Sem me dar conta, eu estava teorizando e compreendendo uma máxima que eu tanto ouvi minha mãe me dizer quando era mais novo. Quando eu lhe azucrinava por algo que ela percebesse meu exagero: "Meu filho, tudo demais é veneno". Eu estava ativando uma consciência de um arquétipo do inconsciente coletivo do Jung. Aquilo que ela me havia dito outrora, talvez não com a clareza que eu enxergava ali naquele momento, era uma replicação de algo que ela havia valorizado e que era conveniente me transmitir. Confesso que não valorizava aquilo antes como quando ali aprendi sozinho.

    Depois de algumas dessas trilhas de pensamento, de forma metódica, e formulada, nessa mania racional humana, criei uma formula mal elaborada que parecia fazer sentido na minha imaginação. O raciocínio na verdade mais se assimilava a um algoritmo torto, ou a uma especulação de scrips teatrais. E se estranhar isso, não poderá imaginar o meu vislumbre.

    Com tanto da minha atenção focada naquilo, de olhos vitrados, umedecendo a boca para ler baixinho aquela criativa frase mais uma vez. Fui interrompido pela bibliotecária, me alertando que o intervalo do lanche da minha escola havia acabado e que eu não podia mais ficar ali e que eu até já "podia" me dirigir a sala de aula. Sai da minha mesa de leitura individual, retirei os fones para conferir se a bibliotecária tinha mais a dizer. Eu não faço ideia de que série eu estudava nessa época, mas me recordo de algo do resto, como por exemplo do jeito dela se referir ao que eu "podia", quando na verdade eu não podia coisa nenhuma. Afinal se a minha liberdade de escolha a primeira vista me iludia se seria sala de aula com uma nada interessante aula de logaritmos ou ao meu quieto mundinho de entendimento, na verdade se limitava a sala de aula agora, ou a coordenação logo depois para discutir minha rebeldia e senso anárquico e egoico, expressão da minha desvalorização da sala de aula, um desrespeito para com meu professor, instituição, meus pais que pagavam aquilo, ... "Posso e estou indo" eu disse e me apressei por outro motivo. O pensamento foi "rebelde", entretanto não me cabia ser.

     "Ver demais pode levar a cegueira..." 

    Me dirigindo a sala, em continua linha de raciocinio, nada constante... Dei um sorriso, desses de canto de boca, olhando pro chão pensando se alguém alguma vez havia lido aquilo como eu. Não precisava ser o mesmo titulo, ou da escola, mas se alguém havia pensado naquela frase. E se para alguém um sim, poderiam haver outros. Como e quantos e onde? Isso me consumia num calculo sem base ou noção.

    Me lembro que ao chegar em sala, esperando o professor chegar para dar sua aula, em meio a uma tempestade de vozes, uma aluna novata, aos fundos da sala, estava aparentemente tão magicamente focada em alguma coisa da sua cabeça ali quieta, quanto eu estava a pouco e me fazia alimentar o pensamento de minha curiosidade sobre o que se passaria ali. Sem me dar conta eu mesmo já estava maravilhado com isso com especulações mil, hipóteses e leituras mirabolantes.

    Meu amigo ao lado me cutucou para saber o que eu tinha. Eu ri. Eu ri porque ele estava curioso, para saber o que eu guardava na minha cabeça, que era exatamente a minha curiosidade sobre o que a menina aos fundos da sala guardava na cabeça dela, e dessa forma ela poderia guardar uma curiosidade sobre o que se passava na cabeça de outra pessoa que nem ali estivesse.

    Meu amigo perguntou o que houve novamente. Eu ri e disse: "Nada não".

    - Ah, mano... Tu é muito desligado do mundo. - Disse ele com um ar de certeza e maturidade. Olhei para ele, saquei os ombros com um olhar despreocupado de: "fazer o que né?" acompanhado de outro sorriso desenganado. Ele voltou a jogar no celular um game sobre doces coloridos pelo resto daquela aula.

    Costumam dizer que sou muito desligado do mundo.
    Fellype Alves
    event sábado, 23 de julho de 2016
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