- Eu desejo.
O mundo. A lua. As estrelas. Desejo devorava todas as imponentes e brilhantes grandiosidades que encontrava, mas sua fome somente gritava por mais magia.
Comeu tantos livros, grimórios, oráculos e arcanos, que sua alma inchou e nela nada mais cabia. Tornou-se assim o Olho do Desejo, passando somente a cobiçar novos mistérios que sua mente já não apreendia, pois tornou-se gulosa, confusa, ensandecida.
- Sou o Olho que tudo vê e não se fecha. O Olho que enxerga o Mundo de Mel e Abelhas e jamais dorme. É terno como o doce estar acordado, mas lancinante como a picada que privou-me dos sonhos.
A alquimia de emoções transbordantes e poderosas concluiu a Operação Vermelha, e o amarelo do mel tornou-se rubro. Transfigurou-se em Olho da Loucura. Cego e tóxico, fitava somente metade da vida, pois fugia da morte em sua busca desengonçada pela velhaca imortalidade.
Por instinto, seguiu o rastro de mel. O Mundo de Mel e Abelhas terminou. Era somente esse mundo que ele conhecia. O pobre tolo!
- Eis-me na fronteira do abismo. Devo cair? Devo saltar? Devo voar?
- Que tal dançar? Cantar? Ou morrer?
Do outro lado do abismo estava um mago com roupas coloridas e um sorriso cheio de dentes estampado na face gorducha. Ele sapateou e soltou a voz, num grasnido:
Eu duvido da tua vida e da tua graça
É a morte a bênção mais linda desse mundo
Achas que por sorte tornou-te tão profundo
Mas sequer aprendeste a amar tua desgraça
- JOGOS: Chamam-me Mago dos Jogos. Porque sei jogar, rir e fazer fogos. Queima, queima, coração em chamas! Tu amas somente a mim.
- OLHO: Eu não te amo. Sequer te conheço, ó, palhaço trambiqueiro!
- JOGOS: Oh! Por isso repudias a Dama Morte? É ela uma eterna desconhecida que te chama e seduz. Por que trocas as trevas pela luz? Assim, tão fácil, desististe de arrancar seu véu, sem titubear? Se amas a terra e o mar, quererás também o despertar e o sono, como mensageiros do céu.
- OLHO: Eu quero o poder, a glória e a eternidade de meu corpo de carne, de minha alma de marfim e de meu espírito invencível!
- JOGOS: Que tal um chá para acompanhar? Biscoitos para molhar?
- OLHO: Um Mago dos Jogos para degolar! Que sabes tu, paspalho trovador, da vida e da morte?
- JOGOS: O Olho deseja o poder, mas se esqueceu de rir. Agora só sabe cair e se perder. No meio do caminho derrubou seu sorriso. Jogo de crueldade e saudade do amanhã.
- OLHO: Controlas tu também o tempo? Que ousadia sem medida! Doce mentira. Sou eu o mestre das cartas e lâminas arcanas! Comando eu a carta d’ O Mundo!
- JOGOS: Não há mundo para aquele que vive somente pela vida. Deverás morrer enquanto vives e viver enquanto morres. Se quiseres tocar o céu, terás que cair. Como poderá levantar aquele que não colocou-se de joelhos? Abraça teu assassino e torna-te também um assassino. Não teme o bem, não teme o mal. Transcende todas as condições e descobrirás a grande mentira: “eu quero viver”.
O Mago dos Jogos lançou seus dados e com eles chamou gigantescas entidades de acordo com o sigilo da face que caía: magníficos servidores coloridos e brilhantes, que gritavam, cantavam e esperneavam.
O Olho tentou matá-lo, do outro lado do abismo, pois não suportava mais o patife bufão. Evocou alguns demônios com hálito de enxofre e cheios de deformidades através de seus selos geometricamente perfeitos.
Jogos sentou-se para meditar e tomar chá enquanto os demônios rasgavam sua alma. Até fez amizade com um deles e os dois foram de mãos dadas visitar os anjos.
Olho bradou orgulhoso:
- Eu o matei! Uma, duas, três vezes. Não contei.
Mas por que Jogos atravessou o abismo e ele não?
E a mentira venceu a verdade.
Olho da Loucura contorcia-se ensandecido ano após ano; década após década. Não importava quantos matasse ou quantos salvasse. Não era capaz de dar um passo adiante na vida ou na morte.
E a doença apoderou-se dele. Amou-o, beijou-o, tornou-se sua mimosa prostituta.
Ficou tão enjoado com Doença, que vomitou o mundo, a lua e as estrelas que antes tinha engolido. Do vômito caíram folhas amassadas de grimórios, símbolos, arcanos de tarot, mel, abelhas, a pedra filosofal e até mesmo alguns deuses enrolados com o feijão do almoço.
- Eu não desejo mais O Mundo. Eu não o desejo mais…
“Olho está velho. Olho está tão doente”. Ele foi Um Mago. Casou Seis vezes. Morreu Treze mortes repletas de bolhas de sabão. Quando finalmente conquistou O Mundo, brincou com ele em suas mãos e pensou que essa jornada era tudo que existia.
Velhinho, velhinho, não sentia mais sabores. Doente, doente, renegou a graça do mundo. E entendeu. Finalmente, conseguiu gargalhar com sua boca banguela.
Gargalhou até que todos os seus dentes caíssem. Esvaziou o saco pesado que levava nas costas, com o resto de um sol e de uma roda. O Olho estava leve e livre e finalmente enxergava algum resquício do universo.
Pela primeira vez, conseguiu dançar. Sapateou como o Mago dos Jogos, à beira do abismo, sem medo de cair. De tão feliz e serelepe atirou-se lá dentro. Como prêmio, ganhou asas.
O mundo converteu-se em loucura; e a loucura converteu-se em mago.
Era a magia: a insanidade.
Jogos apareceu voando numa estrela de oito pontas e gritou:
- Vamos jogar cartas, amigo?
E Olho chorou. Não tinha mais boca para sorrir. Não encontrava mais seu corpo de carne. Onde ele estava?
Jogos deu um sopro e destruiu o espaço. Noutro sopro quebrou o tempo.
Olho foi parar numa carta. Num dado. Num grimório. Numa flor.
Conquistou o que sempre cobiçou: O Mundo inteiro; somente quando o perdeu.
E o Mago dos Jogos? Não vê graça em histórias e filosofias, pois é muito brincalhão. Ele não leva a vida a sério. Não leva a morte a sério.
Guardou o Mundo de Mel e Abelhas de volta em sua carta. Agora construiria um novo mundo chamado Terra. E com ele brincaria de sorrir e chorar.
Isso é um jogo.
Isso não é um jogo.
Fim?